quarta-feira, 6 de junho de 2012


Auto-retrato,
muito joia!
Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage, em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
— Bocage

domingo, 20 de março de 2011

Ensaio Sobre a Morte


“Quereis conhecer o segredo da morte. Mas como podereis descobri-lo se não o procurardes no coração da vida?
A coruja, cujos olhos, feitos para a noite, são velados ao dia, não pode descortinar o mistério da luz.
Se quereis realmente contemplar o espírito da morte, abri amplamente as portas de vosso coração ao corpo da vida.
Pois a vida e a morte são uma e a mesma coisa, como o rio e o mar são uma e a mesma coisa.
Na profundeza de vossas esperanças e aspirações dorme vosso silencioso conhecimento do além; e como sementes sonhando sob a neve, assim vosso coração sonha com a primavera.
Confiai nos sonhos, pois neles se ocultam as portas da eternidade.
Vosso temor da morte é semelhante ao temor do camponês quando comparece diante do rei, e este lhe estende a mão em sinal de consideração.
Não se regozija o camponês, apesar do seu temor, de receber as insígnias do rei?
Contudo, não está ele mais atento ao seu temor do que à distinção recebida?
Pois, que é morrer senão expor-se, desnudo, aos ventos e dissolver-se no sol?
E que é cessar de respirar senão libertar o hálito de suas marés agitadas, a fim de que se levante e se expanda e procure a Deus livremente?
É somente quando beberdes do rio do silêncio que podereis realmente cantar.
É somente quando atingirdes o cume da montanha que começareis a subir.
É quando a terra reivindicar vossos membros que podereis verdadeiramente dançar.” 

Gibran Khalil Gibran.


quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Visão dos Espaços

    Vastidões de beleza intraduzível,
    Fulgurações entre cósmicos flagelos,
    Ideações de fúlgidos castelos
    Onde mora a beleza indefinível.
    -
    Ansiedades trágicas, supremas,
    Na formação das grandes nebulosas...
    Transubstanciações misteriosas
    Gerando os organismos dos sistemas.
    -
    Focos de potentíssima atração
    As moléculas e átomos dispersos,
    Nos elementos de elaboração
    De grandiosos e lindos universos.
    -
    Luminosas esteiras de cometas,
    Formosos em elipses prolongadas,
    Graciosas figuras de planetas
    Emergindo das cósmicas camadas.
    -
    Meteoros celestes, deslumbrantes,
    Nas excelsas alturas transcendentes,
    Onde vibram os sóis incandescentes,
    Asteróides e estrelas fulgurantes.
    -
    Intensidade bela de harmonia
    Que agora sinto, vejo e que percebo,
    Grandiosidades do que não concebo
    Nos apogeus das hiperestesias.
    -
    E, sobretudo, emanam das esferas
    Os equilíbrios das imensidades,
    O eterno canto de sublimidades,
    Clarões de luzes nas atmosferas...
    -
    Sobre todas as coisas assombrosas,
    Fluídos e criações de pensamentos,
    Todas as maravilhas e portentos,
    Há uma luz entre as luzes mais radiosas.
    -
    É o clarão poderoso, indestrutível,
    Que vem das profundezas do passado
    A luz de Deus, à força do incriado
    Na exteriorização indescritível.
    (Augusto dos Anjos, psicografia de Francisco Cândido Xavier em Lira Imortal)

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

O.V.A.C.E.

Cinco minutos e cinquenta segundos foi o tempo em que levamos para reanimar o Sr. V, após ter sofrido um engasgo. Conhecemos como OVACE (Obstrução de Vias Aéreas por Corpo Estranho). O fato se deu em um estabelecimento comercial, sob a vista de muitas pessoas, a maioria colegas do Senhor V. que, apesar de  pouco tempo de manobras, está fadado a um leito por tempo indeterminado. Uma hora bom, nos minutos seguintes sua vida se transforma. A sua e de mais um monte de gente!
É um assunto triste, deveria inspirar o texto que se segue. Mas já não sinto tristeza e tampouco alegria. Sinto apenas que meu papel é o de mero coadjuvante nessa história toda, como um instrumento mal feito para a execução de tarefa laboriosa.
O Sr. V. tem uma vida toda por trás desse esse episódio, o OVACE. Ele tem filhos, esposa, netos, um passatempo preferido, um gosto por determinado tipo de música, um emaranhado de opiniões sobre o mundo, um par de ideias na cabeça, um grande apreço por certo amigo, talvez uma desavença sem sentido (boba mesmo) por outro. Tem um animal de estimação que o estima muito e que sentirá sua falta hoje à tarde. É convicto de que pertence a um determinado grupo, mas não sabe dizer com certeza qual é. Sabe da existência de Deus, porque assim lhe ensinaram, mas tem algumas pendências a serem examinadas futuramente. Seria agora?
O mundo está cheio de letras do alfabeto, que inevitavelmente se cruzarão com algum termo da medicina, para se juntarem e escreverem palavras, palavras que se escrevem nos minutos seguintes, que sempre se sucedem a horas, boas ou ruins. Como o Senhor V., que foi vítima de OVACE, num minuto posterior em que tudo (ou quase) estava bom.
Agora vem a espera e o desejo de que tudo ocorra de bom na vida da família do Sr. V., assim como na dele mesmo.
O futuro é muito incerto, e isso é uma certeza.